Uma mulher identificada por Catarina Demony, descendente de grandes traficantes de escravos em Angola, está a elaborar um documentário, sobre o envolvimento de sua família no tráfico de escravos, uma realidade que lhe trouxe “privilégios” e que decidiu agora expor para “abrir a porta” a um debate, “sem vergonha”, sobre esta parte da história de Portugal, em entrevista a agência Lusa, a jornalista falou sobre alguns detalhes do referido artigo.
Jornalista de profissão, Catarina Demony sempre se questionou sobre a origem do “dinheiro” e dos “privilégios” da sua família. Os avós maternos nasceram em Angola, onde tiveram “uma vida boa”, e foram para Portugal após o 25 de Abril.
“A última vez que um antepassado meu traficou escravos de Angola para o Brasil não foi assim há tanto tempo, foi em 1846”, disse Catarina Demony, em entrevista a propósito de um documentário que está a elaborar sobre este tema, partindo da realidade da sua família.
Entre tantos questionamentos, um dia por meio da sua avô a jornalista viu a sua dúvida esclarecida.
“Estava a falar com a minha avó e ela referiu exatamente isso. Então, mas não sabias que os nossos antepassados, da parte da tua mãe, eram traficantes de escravos em Angola, grandes traficantes de escravos? E eu disse que não, realmente eu não sabia”.
O bisavô da trisavó de Catarina foi o último elemento da família a trabalhar no negócio do tráfico de escravos. Ainda teve “a sorte” de conhecer a trisavó, entretanto falecida, com mais de 100 anos, com a qual nunca abordou este tema.
Actualmente com 28 anos, a jornalista, tinha menos dez quando foi confrontada com este facto e desde então tem procurado documentos para saber mais sobre o assunto, tendo decidido tornar pública a história da sua família e a de outros jovens.
A dificuldade na obtenção de documentos tem sido uma constante, mas um deles revelou que, no último transporte efectuado por elementos da sua família, em 1846, os escravos foram de um porto em Luanda para outro no Brasil.
“Curiosamente, esse último documento mostra que já era um crime. Esse familiar meu, que levou os escravos em 1846, já estava a ir contra a lei e foi julgado em Luanda por isso”, disse, adiantando que “foi chamado a tribunal” e que, o mais provável, “é que não tenha acontecido nada”.
Apesar de Portugal ter sido pioneiro na abolição do tráfico de escravos na metrópole, em 1761, este continuou a ser possível nos territórios. Em 1836, foi publicado um decreto a proibir a “exportação de escravos, quer por mar, quer por terra, em todos os domínios portugueses, sem exceção, quer estes fossem situados ao norte, quer ao sul do equador”. Mas a escravatura em todas as colónias portuguesas só seria abolida, por lei, em 1869.
Na sua investigação, Catarina Demony descobriu que o Museu da Escravatura em Luanda era uma antiga capela dos seus antepassados, onde estes batizavam os escravos antes de irem para os barcos e serem enviados para o Brasil.
“O negócio começa com portugueses, mas chega a um ponto em que os portugueses brancos começam a casar com negras, também de elites angolanas. O que os historiadores dizem é que é quase para facilitar o processo. Temos algumas elites em Angola que fazem o negócio sujo, vão buscar os escravos e depois vendem aos portugueses brancos que, posteriormente, tratam de todo o negócio e processo para chegarem até ao Brasil”, contou.
A jornalista foi-se apercebendo da noção que na altura imperava, de que o tráfico de escravos era “um negócio como outro qualquer”.
“Na altura, ninguém pensava que estavam a traficar escravos, estavam a fazer negócio, estavam a fazer dinheiro”, referiu.
Uma das razões que levou Catarina Demony a avançar, agora, para este documentário, é poder contar com a participação dos familiares.
“A minha bisavó, filha da minha trisavó, bisneta do último familiar traficante de escravos, também caminha para os 100 e, apesar dela se calhar não ter noção do que significa isto da escravatura, é uma das únicas pessoas que ainda beneficiou bastante do dinheiro que veio do tráfico de escravos para a minha família”, ressaltou.
“Quase encerrado” durante muito tempo, o assunto vai ser o tema de um documentário que tem como objetivo “começar uma conversa em Portugal sobre o assunto, seja em grandes eventos ou no café, falar sobre estes assuntos é o primeiro passo para os resolver”.
A profissional de comunicação, considera que “esta conversa da escravatura deveria começar um debate em Portugal”, mas não na perspectiva da vergonha. “Com vergonha, as pessoas sentem-se um bocado mais constrangidas”.
“Acho que nós, jornalistas, passamos literalmente a nossa vida a contar as histórias dos outros. A nossa vida é essa, contar a história das outras pessoas sem às vezes olharmos para nós próprios e pensarmos, bem, mas eu tenho uma história muito interessante na minha família para contar e, se eu não contar esta história, ninguém vai contar para mim”, disse.
De acordo com Catarina, o documentário está a avançar devagar devido a pandemia da Covid-19, com o apoio de amigos, profissionais da imagem, curiosos sobre o tema. E com muitos depoimentos de pessoas que falam abertamente sobre o assunto.
Para Catarina, o impacto que a escravatura teve nos descendentes de escravos dói muito mais do que o impacto na sua vida. “Muito pelo contrário, a realidade é que, o facto de a minha família ter estado envolvida no negócio do tráfico de escravos, abriu-me muitas portas a mim também. Não estou a dizer que o dinheiro que está na conta da minha avó ou dos meus pais vem do tráfico de escravos, mas abriu portas”, realçou.
“Esse tráfico de escravos permitiu a alguém começar negócios, que permitiu a esse alguém ter uma família, permitiu a alguém viajar, até chegarmos a mim. Por isso acho importante este tipo de reflexão. Beneficiou-me, deu-me privilégios que a maior parte das pessoas que são descendentes de escravos não tem e não é só em Portugal. A escravatura tem uma ligação quase directa aos problemas de racismo que temos hoje. Portanto, os meus antepassados e mais não sei quantos antepassados de famílias de elites portuguesas contribuíram para o racismo de hoje. Seria uma hipocrisia eu ir para o meu Twitter ou para o meu Instagram escrever “Black Lives Matter”, movimento contra a violência contra a população negra, e não contar esta história”.
A jornalista não tem dúvidas de que o documentário vai provocar muitos dedos apontados, dos vários lados da história.